segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Ducha retal: a prática da chuca e a visão de especialistas sobre a questão



“Não é porque não se fala de um assunto que ele não existe.” Esta explicação, do enfermeiro e mestre em ciência da saúde Luiz Carlos Ribeiro Lamblet, justifica a pesquisa que ele fez a respeito de uma prática sobre a qual ninguém comenta: a ducha retal (DR), ou enema, ou, ainda, numa linguagem popular, a chuca.  Consiste em lavar o canal do ânus antes de fazer sexo anal, como medida de higiene e, também, para se obter mais prazer. Isso porque, durante o sexo anal, com a penetração e a estimulação do pênis, restos de fezes depositados na âmpola do intestino (parte inferior) podem ser eliminados, causando constrangimento. Com a DR, os resíduos são eliminados.
O estudo de Lamblet, em parceria com o urologista Roberto Carvalho da Silva, do CRT (Centro de Referência e Treinamento em DS/Aids-SP) é o primeiro feito no Brasil sobre o tema. O objetivo foi investigar quem usa a ducha retal, como e em que condições, com que material e qual o impacto da prática na saúde, principalmente no contexto das DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e no comportamento.
A pesquisa de Lamblet e Carvalho da Silva foi feita no ano passado e será publicada em breve na revista científica britânica “BMJ Open”.
Foram feitas entrevistas com 401 pessoas que assim se identificaram: Homem (340), mulher transexual (39), travesti (18), mulher (3) e ainda não definiu (1). A idade mínima foi 18 anos e a máxima, 66. A maioria (266), para surpresa da dupla de pesquisadores, tinha nível superior completo, alguns com pós-graduação.
Desse universo, 369 fizeram sexo anal nos últimos três meses e 197 declararam ter realizado a DR, sendo 93,5%  tendo homens como parceiros sexuais.
Tipos de DR
Existe no mercado, menos nas farmácias e mais em sites de sex shop, uma série de produtos para se fazer a DR, de vários formatos, tamanhos e preços. Mas o estudo de  Lamblet e Carvalho da Silva mostrou que o objeto preferido para este fim é a mangueira do chuveirinho, usada por 85% dos entrevistados. A bombinha plástica em formato de pera, também chamada de ducha ginecológica, vem em segundo lugar. E, em terceiro, aparece o item ducha descartável, que vem ganhando adeptos por oferecer praticidade e condições de higiene.
No Brasil, a única ducha descartável vendida em algumas farmácias, sites ei distribuídas por ONGs em ações de prevenção das DST/aids  é a In-M. Trata-se de uma pequena bolsa de 300 ml, de polietileno, que vem dobrada dentro de uma embalagem, formando um pacotinho parecido com o de uma camisinha. Acoplado à bolsa vem um aplicador para ser inserido no ânus na hora da higiene, que, geralmente, é feita apenas com água – algumas pessoas gostam de adicionar sabonete líquido.
Redução de riscos
“Eu considero a IN-M um insumo de redução de danos pelo fato de ser descartável”, diz Marta McBritton, presidente do Instituto Barong, ONG especializada em prevenção de DST/aids. “Com o uso dela, evita-se que objetos como mangueira de chuveiro e garrafas pets sejam compartilhados.”
É exatamente essa a principal finalidade da ducha, segundo seu inventor, o empresário Marcus Augustus Castropil. Ele criou o produto há dois anos, depois de ter presenciado, segundo conta, pessoas compartilhando, além de mangueirinhas de chuveiro, garrafas pets para fazer a ducha retal.
“Comecei a pensar nos riscos desse compartilhamento, que muitas vezes nem é consentido. Numa casa, alguém pode introduzir a mangueirinha no ânus para fazer a higiene e, logo em seguida, uma criança botar a mesma na boca ao tomar banho. Queria fazer alguma coisa para minimizar o risco de a chuca ser um vetor de bactérias ou de vírus.”
Riscos reais
O urologista Roberto Carvalho da Silva considera pouco provável acontecer transmissão de DSTs via mangueirinha. “Normalmente, a água corrente e um sabonete dão conta de eliminar as bactérias. Mas, claro, se a mangueira entra em contato com fezes ou sangue e, imediatamente, outra pessoa vem e usa, ela pode pegar vermes, hepatite A, HPV”, diz o médico. “É mais provável o risco se a pessoa que fez a lavagem tem uma lesão.”
A proctologista Mirian Jatobá, do CRT, diz que usar o chuveirinho, sem introduzir, é o recomendável para não lesionar a mucosa do ânus. Introduzir objetos, segundo ela, pode não só machucar o canal do reto e a mucosa do ânus como empurrar as fezes para cima. “Elas ficam diluídas no intestino e, na hora do sexo, vão sair do mesmo jeito. A ducha feita só com o jato do chuveirinho já é suficiente para esvaziar a âmpola”, garante.
A médica disse não conhecer a ducha descartável. “Mas o que funciona mesmo é usar camisinha. O receptivo se protege e o ativo também. Ou seja, ambos evitam riscos de infecções.”
Castropil sabe que os médicos não costumam recomendar a DR. Ao conversar com eles, durante os estudos para a criação de seu produto, ouviu muitos dizerem que a DR tira a flora do ânus. “Tira mesmo, mas ela se recompõe  rapidamente. Além do mais, não adianta dizer ‘não faça’ porque as pessoas não vão deixar de fazer. Então, que os riscos sejam minimizados, cada um use a sua e descarte.”
Tabu dos dois lados
Mas o que os médicos realmente sabem sobre a DR e seus efeitos? Carvalho da Silva diz que “sabem muito pouco”. Constata isso nas palestras que faz em congressos e seminários para plateias formadas por especialistas. Numa delas, recentemente, num grande e prestigiado hospital de São Paulo, questionou: “Vocês perguntam a seus pacientes se eles fazem sexo anal? Não, eles não perguntam. Existe um tabu tanto do lado do paciente quanto do médico. Então, se o profissional não investiga, como vai saber se a DR está sendo eficaz ou se está machucando, se diminui ou aumenta os riscos de infecção?”
Relação com HIV/aids
No estudo que fez no CRT, ele e Lamblet constataram um percentual grande de soropositivos e portadores de outras DSTs entre os que afirmaram fazer uso da DR. A mesma associação também apareceu num estudo feito em 2014 pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.
Por que? A resposta ele e seu colega no estudo querem seguir buscando e esperam obter apoio do CRT para esta e muitas outras questões como: “Será que, por fazerem a ducha, essas pessoas se liberam mais para fazer sexo? Será que é porque se machucam? Será que estão fazendo errado? Precisam de algum produto a mais para incluir na prática, como um gel? Será que é preciso dar mais camisinhas para quem faz mais a chuca?” 
Enquanto isso, ele aconselha os colegas a falarem com seus pacientes sobre o assunto. “Mas, antes, o profissional tem de se preparar para falar. Ele tem de aprender a olhar a partir do HSH”, aconselha Lamblet.
Castropil sabe o quanto há de tabu em torno do assunto. “Muitas farmácias se recusam a aceitar o meu produto porque não querem associar sua marca com o universo gay.”
Medida certa
Os médicos são categóricos quanto a quantidade de água permitida em cada DR. Na internet, há tutoriais que ensinam a injetar o líquido tantas vezes for preciso, até que ele saia branquinho, sem um sinalzinho de fezes. Dizem que é nesse ponto que a pessoa está preparada para receber o pênis sem o risco de, na gíria dos gays, “passar cheque”.
A proctologista Mirian é enfática: “Não pode usar tanta água, tem um limite, que não pode ultrapassar 1 litro.”
Na In-M cabem 300 ml. “Se o interessado fizer três vezes o procedimento, que é a média usada, estará dentro do aconselhado pelos especialistas. É o suficiente para manter a ‘salinha’ limpa por quatro horas”, diz Castropil.
“O bom desta ducha é que a pessoa carrega discretamente, como a camisinha, e se aparecer uma oportunidade de transar está na mão”, avalia Artur Kalichman, diretor adjunto do Programa Estadual de DST/Aids do Estado de São Paulo.
No Rio de Janeiro, onde a In-M já patrocinou uma Parada LGBT e também é distribuído por ONGs, o produto encontra mais portas abertas. Perguntamos à ABIA (Associação  Brasileira Interdisciplinar de Aids), onde Castropil divulgou a In-M, o que acha da DR descartável.
"A ABIA entende que a prática de lavagem retal (conhecida como chuca) pode trazer danos à saúde como infecções e problemas intestinais. Neste sentido, o produto que foi apresentado à ABIA tem um potencial para reduzir os danos da prática de lavagem retal. Nós também tivemos acesso a relatos de pessoas que fizeram o uso e alegaram conforto em sua utilização. Entendemos, portanto, que o seu uso pode sinalizar uma redução da possibilidade de perfuração", foi a resposta de Salvador Correa, coordenador executivo da ABIA:
Passivos e ativos
Sim, a DR é feita por quem recebe o sexo anal e isso não é uma prerrogativa de gays. “Há mulheres que vêm ao estande do Barong, nas nossas ações mensais, feitas no Conjunto Nacional [na avenida Paulista], em busca da In-M. Elas contam que usam para fazer sexo anal”, conta Marta McBritton.
“Há pessoas que usam porque têm o intestino preso”, diz Castropil.
Os que não fazem
A Agência de Notícias da Aids ouviu ativistas HSH e gays para saber se eles fazem a DR, quando e como?  Por razão óbvia de sigilo quanto à intimidade de cada um, vamos dar os depoimentos sem citar nomes.
Depoimento 1: “Tem muita viagem em torno da ducha íntima. No Brasil, não se compartilham objetos usados nessa prática porque as pessoas já saem de casa com a ducha feita. Aqui, não há duchas nas boates e casas de pegação. Não se faz duchas nas saunas. Eu nunca fiz nem vi fazerem. E sou contra dizer que é preciso fazer DR por questão de higiene. É higiênico para quem? Tem gente que não gosta mesmo. Vai normatizar o ânus agora? O preservativo e o gel, sim, precisam ser usados. O resto é ao gosto do freguês.”
Depoimento 2: “A chuca sempre foi um trauma em minha vida. Quando criança, minha mãe dizia que para o verme sair era preciso fazer lavagem. Cresci fazendo essa tal lavagem à base do chá de tomatinho, uma erva, que aplicava com uma bombinha. Eu não faço, tenho o intestino regulado e nunca aconteceu uma situação desagradável. Na verdade, a chuca é uma necessidade mais do universo gay, os homens héteros não querem saber disso, eles gostam mesmo é de marcar território. Também já ouvi em muitas palestras que este tipo de lavagem estraga a flora intestinal.”
Depoimento 3: “Eu não faço porque tenho muita dificuldade de introduzir algo no ânus, a menos que seja o pênis do meu companheiro. Eu sempre tomo um banho. E  tiro os pelos com lâmina, mas uso só a minha,  não compartilho com ninguém. Muitas vezes, quando eu saio sabendo que vou transar, e não fui ao banheiro, eu tomo uma dose leve de laxante antes e pronto. Tenho amigos que são adeptos da chuca e fazem sempre, mas, sério,  não é para mim.”
Depoimento 4:  “Eu sei que a mangueirinha do chuveiro é usada em sauna, motel e lugares de pegação. E que a prática de compartilhar oferece riscos, por exemplo, se a pessoa tem HPV e não sabe, faz o uso do chuveirinho e outro,  que não tem o vírus, usa em seguida. Já vi a ducha descartável In-M, mas é um produto caro para uma pessoa de baixa renda. Quando eu vi, custava em média 5 reais. Uma pessoa que não tem dinheiro, vai reutilizar o produto por causa do preço.”
Sobre preço
Marcus Augustus Castropil diz não ter controle sobre os preços da In-M no mercado, mas seu sonho é de que a ducha seja barateada e, até mesmo, oferecida de graça em larga escala. “Eu vendo e cada um acaba cobrando um preço. Se existissem mais farmácias de grande porte comprando, o preço cairia. Reconheço que 5 reais é muito dinheiro para a grande maioria dos brasileiros e meu sonho é de que a In-M seja implementada na política pública de DST/aids. Aí, poderá ser distribuída de graça.”

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