quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Benefícios da carga viral indetectável são debatidos em seminário, em S. Paulo


O infectologista Esper Kallás e o pediatra, ativista e educador comunitário Carué Contreiras foram claros e objetivos: o risco da transmissão de HIV por quem tem carga viral indetectável não existe. Eles falaram na mesa redonda “Eu sou indetectável”, que fez parte do seminário Sexo, Remédios e HIV, na Faculdade de Medicina da USP, São Paulo. Ambos se basearam no resultado do último estudo Partner, divulgado este ano. “A pesquisa acompanhou 58 mil relações sexuais entre parceiros  sorodiscordantes, em que o soropositivo estava indetectável, e não houve nem uma transmissão”, contou Carué. “Por que essa informação não chega a todo mundo?”
Pouco antes, foi exibido um documentário em que várias pessoas, médicos e ativistas, vivendo ou convivendo com HIV, falam sobre o quanto o resultado do estudo os livrou de dor e sofrimento. “Agora, ser indetectável significa ser saudável e não transmissível”, disse um deles. “É preciso fazer com que as pessoas descubram que têm HIV e fiquem indetectáveis a tempo. Isso é saúde pública.”

Carué explicou para a plateia, formada em sua maioria por jovens, que a pesquisa Partner teve um primeiro resultado em 2014, quando acompanhou 17 mil relações sexuais, já com sucesso absoluto.
“Mas foi com o resultado deste ano, que corroborou o anterior, que os países passaram a falar  ‘oficialmente’ do assunto. Os efeitos positivos são muitos: casais sorodiscordantes podem engravidar naturalmente, soropositivos indetectáveis podem exercer profissões  como cirurgião, dentista”, continuou.

O ativista também falou sobre o efeito subjetivo que a informação sobre a não transmissão com carga viral indetectável causa no que ele chama de HIVfobia e auto-HIVfobia.
“Para mim, acompanhar essa pesquisas me permitiu ser mais livre. Eu dizia para meus namorados que eles não precisavam ter medo de fazer sexo oral em mim, por exemplo. O que está matando hoje é o preconceito. Soube recentemente de uma moça que morreu porque se infectou e não conseguiu contar para o marido. Se ela soubesse que poderia ficar indetectável e não transmitir o vírus, será que seu destino não teria sido outro?”
O infectologista, professor e pesquisador Esper Kallás ressaltou que, para ser realmente indetectável, é preciso, além de carga viral indetectável há seis meses, não ter nenhuma outra IST (infecção sexualmente transmissível. Disse que há dois tipos de paciente: o soropositivo e o sorointerrogativo “O sorointerrogativo eu vejo com mais preocupação. É o que não sabe se tem ou não HIV. Esse pode não tomar cuidado na hora de transar e transmitir o vírus. O soropositivo que se cuida não transmite.”
Não é, claro, a primeira vez que a informação sobre a não transmissão por quem é indetectável vem à tona num evento. Recentemente, ela entrou num debate da programação do 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade. Em 2015, foi um dos pontos de discórdia das reportagens sobre o “clube do carimbo” apresentadas pelo “Fantástico”, que acusavam um grupo de “transmitir HIV intencionalmente” e um dos acusados teria carga viral indetectável. Mas o tema, da mesma forma que vem à tona, submerge.

 “Nós, médicos, temos muito medo de dar essa informação e prejudicar a prevenção de outras ISTs [infecções sexualmente transmissíveis]” admitiu ontem a infectologista Denise Lotuffo, gerente da Assistência Integral à Saúde, do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo.

Tratamento como prevenção
Que tomar os antirretrovirais corretamente ajuda na prevenção, exatamente porque indetecta a carga viral e, assim, tira-se o vírus de circulação, o mundo sabe desde 2014. Foi com base nessa constatação que o Unaids (Programa das Nações Unidos sobre HIV/Aids) lançou a meta 90-90-90, que estabelece: até 2030,  90% das pessoas no mundo saibam seu estado sorológico; 90% dessas  estejam em tratamento e 90% das pessoas em tratamento tenham carga viral indetectável.
O Brasil se comprometeu a alcançar a meta até 2020. Vem daí o tratamento antecipado -- a pessoa passa a tomar antirretroviral assim que recebe o diagnóstico, independentemente do CD4 (contagem de células de defesa).
“Eu fiz a opção por tomar remédios antes mesmo da recomendação do governo”, contou o relações públicas Jeferson Martins, que compôs a mesa. “Tinha visto a informação de que era bom iniciar o tratamento o quanto antes, falei com meu infectologista, ele concordava, e decidimos começar.”
 Carlos Henrique de Oliveira, da Rede de Jovens São Paulo Positivo, chamou atenção para o fato de que, quando o assunto é saúde, a maioria das pessoas não tem escolha, como teve Jeferson.
“Estamos num processo de precarização do SUS (Sistema Único de Saúde). Quando se fala em indetectável, fico pensando no conceito higienista por trás de tudo isso. A pessoa com HIV é vista como vetor de um vírus e, com isso, outras questões são deixadas para trás.”
Entre as questões, Carlos Henrique destacou a incidência maior de adoecimentos e mortes em consequência da aids na população negra. “Há 516 anos, são os nossos corpos que são marcados para adoecer e morrer.” E chamou à reflexão: “Quem são os indetectáveis? Quais não são?”
A artista plástica Micaela Cyrino lembrou que, para muita gente, ter HIV é o menor dos problemas. “Muitos não têm o que comer, como vai acessar os serviços de saúde e fazer tratamento?”
Micaela reconheceu que os avanços da aids são muitos, falou que a cura é um sonho possível e a realidade  incomparável aos tempos em que as pessoas morriam por não existir tratamento. “Mas tem, sim, recortes que chamam atenção: mulher negra, questão de gênero, exercício da sexualidade, qualidade de vida, autoestima. Quando é que uma menina em situação de cárcere, por exemplo,  vai ter acesso à saúde?”
A necessidade de combater o preconceito também foi comentada. “É tão importante quanto os avanços científicos”, falou, da plateia,  Rosa Alencar, diretora adjunta do Programa Estadual de de DST, Aids  do Estado de São Paulo. “Saúde não é só tratamento e prevenção. É também respeito aos direitos humanos.”

Hippies da medicina
Da plateia, veio também o depoimento de um garoto com HIV que teve um problema de irritação na pele. “O dermatologista falou que não ia adiantar eu me tratar, que quem tem HIV é assim mesmo. Fui ao meu infectologista e ele me disse que aquilo não era nada, apenas uma alergia, que eu ia viver mais do que muita gente sem HIV, me medicou e eu fiquei bom.”
Esper Kallás respondeu que os infectologistas são os hippies da medicina. “Imagina o que a gente escuta no cafezinho dos hospitais, de colegas de outras áreas. Tenho certeza de que muitos de vocês aqui sabem mais sobre HIV do que muitos médicos.”
O evento, realização do Núcleo de Educação Comunitária da Unidade de Pesquisa II, do CRT (Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids) e da Secretaria da Saúde do Estado tem mais uma mesa redonda nesta quinta (8).
 
Serviço
Mesa redonda PEP e PrEP
Das 19 às 22 horas
Faculdade de Medicina da USP
Avenida Dr. Arnaldo, 455

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