quarta-feira, 29 de março de 2017

Projeto de Lei que altera diretrizes de pesquisas clínicas com seres humanos é aprovado pelo Senado. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa se posiciona contra a decisão



O Projeto de Lei 200/2015 (PLS 200) que modifica o sistema de avaliação de pesquisas com seres humanos no Brasil, foi aprovado pelo Senado Federal, no dia 13 deste mês. Agora, ele está na Câmara dos Deputados como PL 7082/2017 esperando apreciação pelos parlamentares da casa.
“Esse PL do jeito que está representa um retrocesso importante no sistema de quem cuida dos direitos dos voluntários das pesquisas. Primeiro, porque ele propõe acabar com a relação do sistema com o controle social. Ou seja, tira qualquer participação dos usuários nisso”, diz Jorge Venâncio, coordenador da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).
Está publicado no site da senadora Ana Amélia (do PP-RS), autora do projeto ao lado dos senadores Waldemir Moka (PMDB-MS) e Walter Pinheiro (PT-BA), que “entre outros pontos, o Projeto de Lei estabelece exigência de aprovação e revisão por parte de comitês de ética em pesquisa; liberdade para o participante se retirar a qualquer momento do estudo; condução da pesquisa por equipe constituída de pessoas cientificamente qualificadas e de forma a evitar sofrimento e danos desnecessários ao voluntário; suspensão dos procedimentos quando se evidencia a possibilidade de dano, invalidez ou morte; obrigatoriedade de dar publicidade aos resultados; e teste de novos métodos terapêuticos em comparação com os métodos existentes. Também cria o ‘Sistema Nacional de Revisão Ética das Pesquisas Clínicas’, instância nacional harmonizadora da ação dos diversos comitês de ética em pesquisa existentes”.
Porém, Venâncio afirma que essa instância nacional proposta já existe: é a Conep. “Temos uma alta qualificação técnica, decanos fazendo trabalho voluntário e análises de alto parecer técnico. Contamos com a presença das associações de pacientes e representação das diversas instâncias que estão no controle social. Isso faz com que tenhamos uma junção das duas coisas. Você olha pelo lado técnico e também pelo lado humano. A proposta não permite que isso seja mantido. Eles vão montar uma comissão só de técnicos e perder essas relações humanas que trazem a realidade dos participantes da pesquisa”.
Atualmente o Conselho Nacional de Saúde (CNS) é a instância máxima de deliberação do Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter permanente e deliberativo. Composto por representantes de entidades e movimentos representativos de usuários, entidades de trabalhadores da área da saúde, governo e prestadores de serviços de saúde, ele fiscaliza, acompanha e monitora as políticas públicas de saúde do Brasil.
A Conep é uma comissão do CNS e tem a função de implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas aprovadas envolvendo seres humanos. Ela atua juntamente com uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. São 759 centros espalhados por todo o país. Além de todas as atribuições, cabe ao CNS a responsabilidade de aprovar a cada quatro anos o Plano Nacional de Saúde.
O voluntário da pesquisa
Hoje, uma pessoa que participou de uma pesquisa clínica tem o direito de receber a medicação depois que o estudo acaba. Isso, se o tratamento for benéfico para ela. O medicamento é fornecido ao voluntário pelo tempo que for necessário.
De acordo com Venâncio (na foto), no início, o projeto retirava esse direito. Foi por meio de denúncias, argumentos e emendas que ficou definido que o tratamento se mantenha até a incorporação do medicamento ao SUS. “Depois, a responsabilidade sai do laboratório e vai para o governo. No entanto, na situação atual, o Ministério da Saúde não tem verba. O país vai congelar recursos, por vinte anos, a partir do ano que vem. Qual o motivo de a gente pegar uma despesa privada e passar para o poder público? Quando o setor privado chega a um novo medicamento, o lucro é dele.”
Ainda segundo informações que constam no site da senadora, “o projeto contém dispositivos que visam proteger a saúde do voluntário de pesquisa, mediante a garantia de assistência médica com pessoal qualificado durante toda a execução do estudo”.
Mas, o fim do estudo também tem preocupado os pesquisadores. “Em um dos trechos ficou claro que quando ele termina a pessoa tem que se virar. Isso tira direitos que até agora estavam contemplados. Não se pode tratar essa situação dessa maneira. A pessoa se submete a uma pesquisa e de repente esse tratamento pode ser retirado dela”, afirma o professor e pesquisador Jorge Beloqui, integrante do GIV (Grupo de Incentivo à Vida).
O melhor tratamento
Outro ponto apresentando pelo coordenador da Conep, Jorge Venâncio, é o processo de comparação da eficácia do medicamento. Toda droga nova passa por um processo de comparação. Se a doença estudada não tem tratamento, compara-se o medicamento novo com o placebo, a pílula de farinha. Mas, se tem tratamento, ele deve ser comparado à outra droga. “Esse medicamento deve ser comparado ao melhor que existe. Assim, é possível chegar à conclusão se o novo é melhor ou não. Nós conseguimos, na Comissão de Ciência e Tecnologia, colocar desse jeito: o medicamento novo seria comparado ao melhor tratamento. No entanto, quando o texto chegou à Comissão de Assuntos Sociais, o relator trocou para: o tratamento habitualmente utilizado”.
De acordo com o pesquisador Jorge Beloqui, “tratamento habitualmente utilizado é uma generalidade. O tipo de tratamento utilizado pode ser diferente de um hospital para o outro. Esse habitualmente está sujeito à interpretação. Ele permite que não seja fornecido o melhor para as pessoas. Para alguém participar de uma pesquisa, é necessário que ela esteja com a sua cabeça preparada para ceder o uso de seu corpo. A pessoa se entrega por completo quanto entra em um experimento. Então, eu penso que tem que ser garantido o melhor tratamento para ela”, completa.
Tratamento como forma de prevenção
Beloqui observa ainda que o Projeto de Lei não aborda as pesquisas clínicas relacionadas aos tratamentos profiláticos, ou seja, para prevenção. “O capítulo de prevenção foi tirado integralmente do projeto. Isso impacta no combate de qualquer doença. Nesse sentido é um desserviço. Hoje, temos medidas preventivas que são feitas por meio de medicamentos. Um exemplo é a PrEP [profilaxia pré-exposição para o HIV]. Se uma pessoa entra no uso de PrEP, ela não tem a previsão de continuar o tratamento quando o estudo termina. Qual cuidado estão tendo com o voluntário?,  questiona.
Burocratização nas pesquisas
“Hoje, o Brasil é uma das nações mais atrasadas em relação aos processos de autorização e condução dos protocolos de pesquisas. Enquanto no restante do mundo esses procedimentos consomem um prazo que varia de 3 a no máximo 6 meses, no país eles demoram entre 10 e 15 meses de espera”, diz o texto no site da senadora Maria Amélia (na foto).
Venâncio rebate: “Quem é a favor do PL diz que o país está muito atrasado e isso não é verdade. Concordo que podemos avançar em muita coisa. No entanto, o nosso problema é que os laboratórios estrangeiros tem uma estratégia de concentrar suas pesquisas em suas matrizes ou países vizinhos. Isso é um fato. Na distribuição mundial das pesquisas, 42% estão nos Estados Unidos, 28% na Europa. O resto do mundo tem menos pesquisas do que os Estados Unidos. O Brasil está em sexto lugar no bloco de outros países. Quem está a nossa frente é o Canadá, Chile, Coreia, Israel e Austrália. O Brasil está na frente do Japão, que é a terceira economia do mundo e dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), com exceção da China. Dos países da América Latina, estamos à frente da Argentina e México”.
De acordo com Venâncio, o problema do país é falta de financiamento. “Temos que progredir, mas não acabando com os direitos dos voluntários da pesquisa. No país, temos uma boa capacidade tecnológica. O pessoal que trabalha em pesquisa é informado e tem boa base. O nosso problema central é financiamento. Uma grande parte das pesquisas tem sido feitas por laboratórios de fora. A participação dos órgãos de fomento a pesquisa no país ainda é pequena”.
Com relação aos prazos, Venâncio esclarece: “Eles se queixam muito que os prazos da Conep são longos, no entanto, nos dias de hoje, isso não é verdade. Há pouco mais de um ano, estamos trabalhando com prazos inferiores há 30 dias, para dar respostas a qualquer pesquisa que chega para nós”.
Como o projeto passou pelo Senado?
Em cada comissão que o PL passou, foram feitas discussões e emendas com intuito de melhorar a proposta. Duas audiências públicas aconteceram para discutir esse projeto. Uma ocorreu em 18 de março de 2014 na Comissão de Assuntos Sociais. A outra foi realizada em 10 de novembro de 2015 na Comissão de Ciência e Tecnologia. Quatro substitutivas diferentes foram incluídas, duas na Comissão de Ciências e Tecnologia e Duas na Comissão de Assuntos Sociais.
“Quando o Projeto chegou ao final, ele estava completamente diferente de quando teve a audiência pública de novembro. Por este motivo, foi pedido uma nova audiência. A autora do Projeto, [a senadora Maria Amélia] foi radicalmente contra, colocou para votar e derrubou a proposta de uma audiência na comissão. Por causa disso um grupo de senadores apresentou um recurso na plenária pra que a audiência acontecesse”, explica Venâncio.
Pelo regimento, era preciso nove assinaturas e foram colhidas 12. “Quando chegou ao plenário, foi aberto prazo para se apresentar emendas. Todas foram apresentadas. No primeiro dia de tramitação, quando o projeto e as emendas iam para as comissões, fizeram um pedido de urgência. Aprovaram no mesmo dia e no dia seguinte o PL foi colocado no plenário para ser votado.”
O pedido de urgência é utilizado para dar prioridade a uma proposta que tramita no legislativo. No caso do PL 200/2015 o requerimento foi assinado, em 14 de fevereiro, pelos senadores Renan Calheiros (PMDB-AL), Fernando Collor de Mello (PTC-AL), Humberto Costa (PT-PE), Vicentinho Alves (PR-TO), Paulo Bauer (PSDB-SC) e Omar Aziz (PSD-AM).
Após a aprovação do Projeto de Lei pelo Senado, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Recomendação 003, de 17 de fevereiro de 2017, em que solicita a rejeição do PL 7082/2017 à Câmara dos Deputados. O argumento é que este projeto reduz os direitos dos participantes de pesquisas. (Leia aqui).
“Nós dizemos que do jeito que está ele merece ser rejeitado. Mas, ao mesmo tempo, apresentamos as emendas para consertar o que está errado. O foco principal é mostrar que desse jeito, ele é um retrocesso grave, em relação aos direitos das pessoas que participam das pesquisas”, conclui Venâncio.
 Ativistas contra o projeto
O Movimento Paulistano de Luta Contra a Aids (Mopaids), também se manifestou contra o projeto, depois de uma reunião realizada em 17 de março, junto com o coordenador da Conep e representantes de ONGs aids da cidade de São Paulo, o Mopaids emitiu uma carta convidando todo o movimento de luta contra a aids a se informar e se posicionar a respeito do PL 7082/17 (Leia aqui).
Agora, o Projeto de Lei 7082/17 está nas Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; Seguridade Social e Família; e Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. A tramitação do PL 7082/2017 pode ser acompanhado aqui.
Nota
A reportagem da Agência de Notícias da Aids tentou contato, desde terça-feira (21), com a senadora Maria Amélia, mas foi informada pela assessoria de imprensa que não havia previsão de data para uma entrevista. O texto publicado no site da senadora Ana Amélia pode ser lido clicando aqui.

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