Vinte anos depois do início de uma campanha internacional por parte de países em desenvolvimento para que remédios cheguem às populações mais pobres a um preço justo, a batalha ainda não está vencida. Nesta semana, a brasileira Mariângela Simão assumiu o cargo de chefia na Organização Mundial da Saúde (OMS) para o acesso a remédios, um dos postos mais importantes dentro da entidade.
Ex-diretora do programa nacional de combate à aids no Brasil, a brasileira passou a ser referência internacional em todos os debates sobre a forma de lidar com o abastecimento de remédios de ponta para as populações que não contam com recursos para arcar com a nova tecnologia.
Ao assumir o novo cargo, Mariângela insiste que sua missão é praticamente a mesma daquela que tinha há anos no Brasil: garantir que milhões de pessoas pelo mundo tenham acesso aos medicamentos, independentemente de onde vivam ou de sua renda. Segundo ela, o maior desafio continua sendo o preço cobrado pelos remédios que salvam vidas.
Leia a entrevista:
Depois de anos trabalhando para garantir que tratamentos cheguem aos mais vulneráveis, a senhora assume um dos cargos mais importantes na OMS em um momento de debate justamente sobre o acesso à saúde. Qual será sua prioridade?
A prioridade total é garantir que as pessoas tenham acesso aos bens de consumo de saúde e quando sejam necessários. Esse será meu principal objetivo. As pessoas precisam ter acesso aos remédios que precisam, independentemente de onde nasceram e de sua renda. O acesso é um direito. Para isso, os preços de remédios precisam ser sustentáveis e esses produtos que salvam vidas precisam ter valores justos. Isso é nossa maior luta. Em temas como a aids e tuberculose, se avançou muito. Mas, pelo mundo afora, doenças crônicas continuam a afetar de forma dura diversos países, que lutam pelo acesso.
Qual o maior desafio para garantir o acesso a remédios?
Parte do desafio é o de garantir a existência de uma infraestrutura nos países em desenvolvimento para que os remédios possam ser entregues. Um sistema de saúde em bom funcionamento para que haja a saída de paciente com remédios que precise. Mas o desafio maior é o preço dos remédios e quem paga por ele.
Qual é o fator que mais tem determinado o preço hoje?
O preço está relacionado à competição. Quando se tem o monopólio de um produto, o fabricante faz o preço que quer se não tiver uma agência reguladora. É a ausência de competição que faz com que os preços aumentem. Agora, o que virou o jogo foi aparecimento de um tratamento para a hepatite C, que é um verdadeiro bem público global. O produto chegou ao mercado com um preço exorbitante e, nos Estados Unidos, cada comprimido chegou a custar US$ 1 mil. Pela primeira vez, portanto, houve uma discussão séria sobre acesso que desembarcou às portas dos países ricos. Toda essa questão da inovação e o preço que é praticado supostamente para pagar pela inovação é mesmo o grande desafio. Hoje, o custo dessa inovação não é transparente e, portanto, o preço com que o produto chega ao mercado é o grande desafio.
No Brasil, a senhora esteve envolvida em processos de licenças compulsórias. O instrumento ainda tem algum tipo de influência no mercado e para negociar acordos com o setor privado?
Certamente. As licenças compulsórias continuam tendo um impacto. Recentemente, a Malásia aplicou no caso de um medicamento contra hepatite C o sofosbuvir. O preço era de US$ 12 mil por paciente e optaram por uma produção local. No âmbito da aids, acordos de preços foram fechados com o setor privado, chegando a US$ 74 por ano. Isso mostra que é possível fazer parcerias.
Mas a questão do acesso a remédios é apenas comercial ou política também?
Claro. Parte da questão é também a forma pela qual os países se organizam para ter acesso aos remédios. Nos últimos anos, mecanismos internacionais foram criados para dar flexibilidade para a compra de remédios. Mas eles ainda são pouco usados. São instrumentos complexos e que um governo precisa agir de forma para não desabastecer o mercado e, ao mesmo tempo, garantir que não estejam violando regras internacionais. Nessa questão, a vontade política é importante.
Uma das metas da Organização das Nações Unidas (ONU) é a de acabar com a epidemia da aids até 2030. Isso é possível no atual cenário de acesso a remédios?
Os objetivos são visionários, mas a comunidade internacional precisa disso para empurrar o assunto adiante. O que, sim, será necessário é um grande volume de investimentos.
Fonte : O Estado de S. Paulo
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