terça-feira, 10 de outubro de 2017

Mariângela Simão: 'As pessoas precisam ter acesso aos remédios, independentemente de onde nasceram'



Vinte anos depois do início de uma campanha internacional por parte de países em desenvolvimento para que remédios cheguem às populações mais pobres a um preço justo, a batalha ainda não está vencida. Nesta semana, a brasileira Mariângela Simão assumiu o cargo de chefia na Organização Mundial da Saúde (OMS) para o acesso a remédios, um dos postos mais importantes dentro da entidade. 
Ex-diretora do programa nacional de combate à aids no Brasil, a brasileira passou a ser referência internacional em todos os debates sobre a forma de lidar com o abastecimento de remédios de ponta para as populações que não contam com recursos para arcar com a nova tecnologia. 
Ao assumir o novo cargo, Mariângela insiste que sua missão é praticamente a mesma daquela que tinha há anos no Brasil: garantir que milhões de pessoas pelo mundo tenham acesso aos medicamentos, independentemente de onde vivam ou de sua renda. Segundo ela, o maior desafio continua sendo o preço cobrado pelos remédios que salvam vidas. 
Leia a entrevista: 
Depois de anos trabalhando para garantir que tratamentos cheguem aos mais vulneráveis, a senhora assume um dos cargos mais importantes na OMS em um momento de debate justamente sobre o acesso à saúde. Qual será sua prioridade?
A prioridade total é garantir que as pessoas tenham acesso aos bens de consumo de saúde e quando sejam necessários. Esse será meu principal objetivo. As pessoas precisam ter acesso aos remédios que precisam, independentemente de onde nasceram e de sua renda. O acesso é um direito. Para isso, os preços de remédios precisam ser sustentáveis e esses produtos que salvam vidas precisam ter valores justos. Isso é nossa maior luta. Em temas como a aids e tuberculose, se avançou muito. Mas, pelo mundo afora, doenças crônicas continuam a afetar de forma dura diversos países, que lutam pelo acesso. 
Qual o maior desafio para garantir o acesso a remédios?
Parte do desafio é o de garantir a existência de uma infraestrutura nos países em desenvolvimento para que os remédios possam ser entregues. Um sistema de saúde em bom funcionamento para que haja a saída de paciente com remédios que precise. Mas o desafio maior é o preço dos remédios e quem paga por ele. 
Qual é o fator que mais tem determinado o preço hoje?
O preço está relacionado à competição. Quando se tem o monopólio de um produto, o fabricante faz o preço que quer se não tiver uma agência reguladora. É a ausência de competição que faz com que os preços aumentem. Agora, o que virou o jogo foi aparecimento de um tratamento para a hepatite C, que é um verdadeiro bem público global. O produto chegou ao mercado com um preço exorbitante e, nos Estados Unidos, cada comprimido chegou a custar US$ 1 mil. Pela primeira vez, portanto, houve uma discussão séria sobre acesso que desembarcou às portas dos países ricos. Toda essa questão da inovação e o preço que é praticado supostamente para pagar pela inovação é mesmo o grande desafio. Hoje, o custo dessa inovação não é transparente e, portanto, o preço com que o produto chega ao mercado é o grande desafio.
No Brasil, a senhora esteve envolvida em processos de licenças compulsórias. O instrumento ainda tem algum tipo de influência no mercado e para negociar acordos com o setor privado?
Certamente. As licenças compulsórias continuam tendo um impacto. Recentemente, a Malásia aplicou no caso de um medicamento contra hepatite C o sofosbuvir. O preço era de US$ 12 mil por paciente e optaram por uma produção local. No âmbito da aids, acordos de preços foram fechados com o setor privado, chegando a US$ 74 por ano. Isso mostra que é possível fazer parcerias. 
Mas a questão do acesso a remédios é apenas comercial ou política também?
Claro. Parte da questão é também a forma pela qual os países se organizam para ter acesso aos remédios. Nos últimos anos, mecanismos internacionais foram criados para dar flexibilidade para a compra de remédios. Mas eles ainda são pouco usados. São instrumentos complexos e que um governo precisa agir de forma para não desabastecer o mercado e, ao mesmo tempo, garantir que não estejam violando regras internacionais. Nessa questão, a vontade política é importante. 
Uma das metas da Organização das Nações Unidas (ONU) é a de acabar com a epidemia da aids até 2030. Isso é possível no atual cenário de acesso a remédios?
Os objetivos são visionários, mas a comunidade internacional precisa disso para empurrar o assunto adiante. O que, sim, será necessário é um grande volume de investimentos.  

Fonte : O Estado de S. Paulo

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