domingo, 6 de março de 2016

Dia da Mulher: Jenice Pizão deixa o front da luta contra aids para a nova geração de soropositivas


“Ai, pode me ligar mais tarde porque agora eu preciso dar atenção para o meu neto?”, pede Jenice Pizão ao atender o telefone. “Desculpe, estou em cima da hora, tenho de sair para a meditação”, diz ela, desligando o aparelho e encerrando a nossa entrevista algumas horas mais tarde. 
Esses dois momentos resumem bem o atual modo de vida da professora de história aposentada que, ao lado de Nair Brito, fundou em 2004 o histórico MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas) e passou treze anos se dedicando quase integralmente a ele. Não dá para fazer as contas de quantas viagens, oficinas, projetos, manifestações ela liderou, tendo como meta conscientizar e empoderar as mulheres com HIV/aids. Agora, Jenice se afasta do movimento para cuidar da vida, da família (ela tem uma filha e três netos de 21, 17 e 5 anos), ver os amigos, ler, viajar, namorar. 
Jenice diz estar em paz com a decisão porque sabe que fez tudo o que pôde e desejou pela causa. “Está na hora de deixar as mulheres da segunda geração do movimento tomar a frente”,  pondera. “Se eu e a Nair ficarmos, elas não vão aparecer. Fizemos nossa parte. Costumamos dizer que hoje somos HIVéia (trocadilho com HIV e velha)”, brinca, dando gargalhada.
Com 57 anos, divorciada, ela mora em Campinas (SP) e conta que fazia parte da RNP (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV) da cidade quando conheceu outras ativistas, entre elas a pedagoga Nair Brito e a advogada gaúcha Beatriz Pacheco. “Na RNP, em primeiro lugar vinham os homens”, diz. Visando contemplar as especificidades das mulheres, as ativistas resolveram propor um projeto para levar informações e promover conversas com elas. O Programa de Aids da época bancou a ideia e ela, com mais oito companheiras,  fizeram três grandes oficinas no Brasil. Surgiu dessa experiência o MNCP.
“Na época fomos muito criticadas. Diziam que estávamos fracionando o movimento da aids. Depois entenderam”, continua Jenice.
A história seguiu com o movimento ganhando o país, as cidadãs se multiplicando em núcleos, colaborando para com a criação de outros movimentos, como CM+LP – Comunidade de Mulheres Posithivas de Língua Portuguesa e tecendo redes com outros países da América Latina. 
Saber para reagir
Entre os trabalhos mais marcantes, Jenice cita o Saber Para Reagir, patrocinado pelo Unaids (Fundo das Nações Unidas sobre HIV/Aids) com apoio de outros organismos internacionais e do Ministério da Saúde.
O trabalho, como foco em questões de gênero e direitos reprodutivos, envolvia o Brasil e todos os países africanos de língua portuguesa.
“Começou em 2009 e foi até 2013. O objetivo era criar, com base nas oficinas que desenvolvemos, um material pedagógico e didático para todos os países participantes. Assim, o trabalho teria sequência. Mas não foi o que aconteceu. O Unaids fez apenas 60 apostilas e as distribuiu apenas no Brasil. Acredita que eu e a Nair não temos essa apostila? Uma pena um projeto que envolveu tantos anos de trabalho, tanto investimento, ter acabado assim.”
Flores vermelhas
Outro projeto que ela acha “lindo”  é o “Flores Vermelhas”, com livro e DVD lançados em 2014 para contar a história das cidadãs. “Foi minha última contribuição para o movimento.”
No balanço que faz, Jenice acredita que o maior ganho das mulheres nesses anos de MNCP foi a consciência de que têm de lutar para conseguir o que querem. E o que faltou conquistar? “O atendimento médico específico. Nós menstruamos, engravidamos, temos menopausa. É preciso investir em estudos sobre, por exemplo, efeitos colaterais das drogas antirretrovirais no nosso corpo.” 
Mas, claro, o fato de sair do movimento não significa ficar alheia aos acontecimentos. Afinal, uma vez ativista, ativista sempre. Prova é que Jenice anda preocupada com o que chama de “desmonte” do Programa Municipal de Aids de Campinas. “Os nossos serviços já foram referência. Hoje, temos só uma nutricionista para atender a rede toda. Se você precisa de um oculista, é mandada para a atenção básica e aí leva quatro meses para marcar uma consulta. Eu chego num serviço e vou conversar com as pessoas, quero entender o que está acontecendo.”

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