“É inaceitável que nos dias de hoje ainda vemos meninos sofrendo o mesmo tipo de preconceito que vivemos há 35 anos”, disse José Roberto Pereira, o Betinho, vice-presidente do Projeto Bem-Me-Quer, no encerramento do seminário que marcou os 20 anos da ONG, nesta sexta-feira (21), em São Paulo. Minutos antes, a professora Nair Brito (foto acima) fez uma palestra, que chamou de Metanoia (meta=além e noia = pensamento), na qual pediu à plateia para falar sobre preconceito. “Que tipo de preconceito vocês sofrem?”
“Eu morava com uma amiga, na casa dela, quando tive o diagnóstico do HIV. Uma outra amiga dela, que foi me buscar no hospital onde estive internado, abriu meus exames sem eu permitir, viu, e contou para ela. Ela veio me perguntar se era verdade. Eu disse que sim e ela me botou para fora de casa na hora”, revelou um garoto de 20 anos.
Um outro contou que todos os amigos se afastaram dele assim que ele revelou ser soropositivo. Uma professora de educação infantil disse que na escola onde dá aulas todos os educadores defendem que o colégio tem de saber se a criança tem HIV para poderem tomar cuidado e não deixá-la infectar os outros. Uma mulher contou que adora cozinhar, tem vontade de reunir os parentes num almoço, mas eles se recusam a comer na casa dela desde que ela descobriu ser soropositiva. Outra, que os filhos tentam impedi-la de sair para se divertir. E assim foi.
Nair Brito, uma das criadoras do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas), ao encerrar sua apresentação, falou da importância de se viver em sociedade e do quanto o preconceito faz vítimas mortais. “Ele destrói o indivíduo, consequentemente destrói a sociedade, porque cada um de nós é uma extensão do outro.”
A professora se disse feliz por ter atingido o objetivo de inquietar e trazer novas formas de reflexão para o movimento de aids “Saio daqui junto e misturada com vocês”, disse ela, sob aplausos.
“Vamos nos unir e ver como podemos avançar na nossa resposta contra esse tipo de coisa”, convocou Betinho.
Roseli Tardelli, diretora da Agência de Notícias da Aids, sugeriu que é preciso falar mais sobre HIV/aids para desmistificar. Citou como exemplo a sua experiência própria. "Quando meu irmão morreu em consequência da doença, em 1994, nossa família não escondeu, os vizinhos souberam e hoje aceitam bem o projeto Lá em Casa [de convivência e reabilitação física para pessoas carentes com HIV] que funciona na casa onde morávamos."
Resistência
Nair falou num painel filosófico do qual participou o também professor e psicólogo Ronaldo Neves (na mesa, na foto principal), que atuou durantes seis anos no Programa de Aids de Diadema, na Grande São Paulo. Ele abordou o tema “O moralismo e suas representações através da história”. Ronaldo questionou exatamente por que, apesar dos avanços dos tratamentos, o preconceito ainda é grande e as pessoas continuam se infectando.
Ele defendeu que todo esse contexto de estigmas e comportamentos passam pela questão política. Falou das regras impostas às pessoas desde o nascimento e da normatização que “coloca cada um no seu quadrado”. Disse que, para se viver bem, é preciso resistir. E citou alguns exemplos de resistência. Um deles, o escritor e ativista Beto Volpe. “Um cara fabuloso, que desconstrói tudo aquilo que as pessoas esperam de alguém vivendo com HIV.”
Outro exemplo de resistência foi a ONG Bem-Me-Quer. “Nasceu de uma congregação irlandesa, de freiras velhinhas, que vieram para o Brasil e aqui morreram. Ficou uma delas [ a irmã Helena], que seguiu lutando, e deixou a maior herança que poderia ter deixado às pessoas em torno dela. Essas pessoas deram continuidade ao trabalho.”
Por que?
Ainda no seminário comemorativo aos 20 anos da Bem-Me-Quer, Mário Scheffer (na mesa, com Artur Kalichman) , professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, chamou à reflexão sobre por que os casos de aids estão crescendo tanto, especialmente entre os jovens, se temos todas as ferramentas para evitar esse quadro. “Não basta fazer mais do mesmo, a resposta tem de ser mais diversificada”, disse.
Scheffer considerou que o Departamento de HIV, Aids e Hepatites Virais fez uma “péssima gestão” nos últimos anos e as esferas estaduais e municipais também nada acrescentaram às políticas de aids no Brasil.
“A ascenção de forças políticas conservadoras certamente ameaçou a prevenção. Elas sempre estiveram aí, mas agora está ficando muito mais sério [o cenário político] e vai exigir dos ativistas da aids uma aproximação com outros movimentos. Temos de encontrar formas de enfrentar os retrocessos. É hora de um novo ativismo.”
Outro grande obstáculo que está ficando maior, apontou Mário Scheffer, é o desmonte do SUS (Sistema Único de Saúde) e as péssimas perspectivas que se avistam caso seja aprovada a PEC 241, de congelamento dos gastos públicos. “Não há possibilidade de avançar senão dentro do SUS e não haverá mais recursos para ele.”
Números do estado
O médico Artur Kalichman, coordenador adjunto do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, mostrou gráficos em que o aumento de casos de aids aparece especialmente nos estados do norte e do nordeste. Há uma queda na região sudeste, mas não em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Com isso, ele respondeu à pergunta que a mesa propôs: As novas tecnologias estão ao alcande de todos?
“Não, elas não estão. Principalmente não estão ao alcance das populações mais vulneráveis”, disse Kalichman. Lembrou que em São Paulo é assustador o aumento de casos na população entre 15 e 24 anos de HSH (homens que fazem sexo com homens). E disse que o grande desafio hoje é preparar os profissionais de saúde e organizar os serviços para que eles possam atuar na prevenção combinada.
O médico destacou que o incentivo ao uso da camisinha continuará sendo a principal estratégia de prevenção. “É barata, não precisa de médico, nem de enfermeira, pode ir onde o povo está. Em São Paulo, são distribuídas cerca de seis milhões de camisinhas ao mês.”
Quanto à PEP (profilaxia pós-exposição), Kalichman alertou que ela precisa ser feita no serviço de saúde em até 72 horas após o risco à exposição e durante 28 dias. Consiste no uso de antirretroviral por pessoas que correram o risco de infecção por meio do sexo ou acidentes, como os de trabalho.
Em 2011, ano em que a tecnologia foi adotada, o estado de São Paulo dispensou 547 PEPs. Em 2015, foram 7.535. Em 2014, 3.632. “Ano a ano, o crescimento é de 100% e a PEP sexual é a que mais aumenta.”
Os testes rápidos estão em 548 unidades básicas do estado disse o médico ao falar sobre testar e tratar. Ele destacou a importância do tratamento como prevenção. “A carga viral indetectável tem a mesma eficiência da camisinha, de mais de 90%. Ou seja, o risco de transmissão do HIV é muito baixo. Por isso, o tratamento é importante tanto para o bem individual como o coletivo.”
O gestor citou que a chegada do inibidor de integrasse dolutegravir à primeira linha de tratamento é uma esperança de melhorar a adesão, levando em conta que o remédio promete bem menos efeitos colaterais. E terminou dizendo que é essencial garantir espaços para a discussão da sexualidade, assim como garantir e respeitar as escolhas individuais.
Mais números
258 mil pessoas vivem com HIV no estado de São Paulo
205 mil estão diagnosticadas
170 mil chegaram ao serviço de saúde
155 mil continuam no serviço
160 mil estão com carga viral indetectável
109 mil estavam em tratamento nos últimos cem dias.
É dia de festa
No fim, Betinho fez uma homenagem a algumas entidades, ONGs e à Agência de Notícias da Aids. “São nossos parceiros nesses 20 anos de luta”, disse, chamando ao palco um a um para receber a placa de menção honrosa. Em seguida, teve o “Parabéns a você” e foi cortado o bolo, há 20 anos feito por Lúcia Aparecida Tavares Felício, responsável, no projeto Bem-Me-Quer, pela oficina de confeitaria. Veja a seguir uma galeria das fotos da entrega dos prêmios:
Américo Nunes Neto é homenageado em nome do Instituto Vida Nova
Artur Kalichman: homenagem pelo Programa Estadual de DST/ Aids de São Paulo
Eliana Gutierrez: pelo programa Municipal de DST/ Aids de São Paulo
Cláudio Pereira e Américo Nunes Neto recebem homenagem em nome do Mopaids
Maria Hiroko e Mário Scheffer: premiados pelo trabalho do Pela Vidda
Lúcia Aparecida Tavares Felício (de azul); pelo trabalho na oficina de confeitaria da Bem-Me-Quer
Luciana Montagneiro recebe o prêmio em nome dos usuários da ONG
Roseli Tardelli e Fátima Cardeal: pelo trabalho da Agência de Notícias da Aids
Lucila: pelo Fórum de Ongs/Aids do Estado de São Paulo
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