Pierre Freitaz (foto), de 29 anos, pulou o gradil que separa a calçada de pedestres dos limites da Ponte Eusébio Matoso, uma das mais movimentadas de São Paulo. Colocou os braços para trás, agarrou a grade e se inclinou em direção ao abismo. Lá embaixo, viu o Rio Pinheiros, sujo, parado, escuro. Aos 15 anos, naquela tarde de setembro de 2003, Pierre pensava em acabar com a própria vida. Horas antes, num consultório a 1 quilômetro da ponte onde se pendurava, ouvira de um médico a notícia: tinha o vírus HIV. Ao lembrar aquele momento, o rapaz diz que nenhum pedestre ou ocupante de carro o acudiu. Ele só escutou alguém gritar: “Pula logo!”.
“Eu tinha certeza de que ia morrer em semanas”, diz Pierre. Por motivos que não lhe são claros, não saltou da ponte. Após 30 minutos, pulou o gradil de volta para a calçada, caminhou até um ponto de ônibus e voltou para casa, em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo. Naquela noite, chamou quatro amigos para contar a notícia, aproveitando que a mãe, empregada doméstica, não chegara do trabalho. Sentaram-se à mesa da cozinha. Pierre disse que tinha o vírus da aids. Imediatamente, um dos amigos afastou a perna. “Com aquele gesto, tive certeza de que havia feito besteira em contar.” No fim de semana seguinte, percebeu que a notícia havia se espalhado. Em uma festa, ninguém queria cumprimentá-lo. No lugar dos abraços afetuosos que costumava trocar com os amigos, via mãos estendidas. Havia quem se afastasse. Contrariando suas expectativas iniciais, a vida prosseguiu. Ele terminou a escola, trabalhou como assistente administrativo e se tornou o primeiro em sua família a se formar em uma faculdade, em julho deste ano. O assistente social Pierre Freitaz, de 29 anos, é hoje um dos centenas de milhares de brasileiros que aprenderam, nos 35 anos de epidemia do HIV, que é possível viver com o vírus. Não sem enfrentar lutas cotidianas que deixam marcas – algumas visíveis, outras invisíveis, todas dolorosas.
Nos últimos anos, cada vez mais jovens como Pierre enfrentam os mesmos temores. Nunca tantos foram diagnosticados com o vírus ou com a doença que ele causa, a aids, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde na semana passada. Treze anos após o exame de Pierre, mais que duplicou o número de jovens do sexo masculino, entre 15 e 19 anos, que desenvolveram a doença. São sete a cada 100 mil habitantes (leia a arte). Entre aqueles com 20 a 24 anos, a epidemia também dobrou. São 33 a cada 100 mil habitantes. O crescimento é motivado em parte pelo aumento dos casos entre homens que fazem sexo com homens. Entre 2003 e 2015, o número de pessoas com a doença nessa população cresceu uma vez e meia. “Os dados sugerem que, no futuro, poderemos ter uma epidemia maior no Brasil do que a de hoje”, diz o cientista social Alexandre Grangeiro, especialista em epidemiologia e avaliação de sistemas de saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “A incidência do vírus entre os jovens que nasceram a partir dos anos 1990 já é maior do que entre os que nasceram nas décadas de 1960 e 1970, a geração que mais havia contribuído para o número de casos no Brasil até hoje.”
A política brasileira de combate à epidemia é reconhecida internacionalmente. O país foi um dos primeiros a adotar uma estratégia contra a doença. Fundado em 1986, o programa nacional encontrou condições ótimas para se desenvolver em plena abertura democrática, com o fim da ditadura e o início das discussões da nova constituição, que adotaria um sistema de saúde universal, uma das bases do sucesso do modelo. Mas, nos últimos anos, o aumento de casos como o de Pierre e mudanças na política adotada pelo Ministério da Saúde levam especialistas e ativistas que ajudaram a fundar o programa a questioná-lo. “A resposta brasileira não é mais um exemplo a ser seguido”, afirma o psicólogo Salvador Corrêa, coordenador executivo da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). “A política fracassou e colocou em xeque a capacidade do país de enfrentar a epidemia.” A crítica não é unânime. O infectologista Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo, lembra que muitas epidemias seguem ciclos de alternância entre períodos com mais e com menos casos. “Isso aconteceu com a aids em San Francisco, nos anos 1980 e 1990. Pode estar acontecendo no Brasil”, afirma. Essa seria uma explicação mais reconfortante para o aumento do contágio entre jovens. Seria um mau passo do governo, porém, basear-se apenas nela para definir seu curso de ação.
Em 2003, meses antes de Pierre cogitar se matar, o governo brasileiro começava a receber reconhecimento internacional pela estratégia contra a aids. Em uma cerimônia em Washington, em maio, o então chamado Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde recebeu da Fundação Bill e Melinda Gates US$ 1 milhão como prêmio. A política combinava acesso gratuito e em massa a medicamentos antirretrovirais com campanhas ousadas de prevenção. No mesmo mês, o então coordenador do programa, Paulo Teixeira, havia aceitado um convite da Organização Mundial da Saúde (OMS) para formular a nova política da entidade para a aids, inspirado na experiência brasileira. Um grande acerto ocorrera em 1996, quando cientistas confirmaram que novas drogas antirretrovirais, combinadas, poderiam evitar a replicação do vírus no organismo. O governo brasileiro foi ágil e aprovou no mesmo ano a distribuição gratuita, pelo Sistema Único de Saúde, do coquetel de antirretrovirais para pessoas com vírus HIV ou aids. Naquele momento, OMS e Banco Mundial defendiam ênfase na prevenção e não no tratamento. Ao agir contra essa orientação internacional, o Brasil inovou e se tornou o primeiro país em desenvolvimento a investir em massa nos antirretrovirais. As mortes pela doença, que estavam na casa de 15 mil em 1996, caíram para 12 mil no ano seguinte e alcançaram o patamar das 10 mil em 1998. O reconhecimento da estratégia pela OMS em 2003 foi a coroação internacional da política brasileira.
Uma explosão de DSTs
A partir desse período, porém, o país começou a registrar a piora de alguns indicadores. Isso ocorreu por uma combinação de acomodação no sucesso e aumento da burocracia para correções de rumo na estratégia. Na média nacional, o número de casos de aids parece estável nos últimos dez anos. Mas isso esconde detalhes importantes. Quedas nas regiões Sudeste e Sul ajudaram a puxar para baixo a média nacional. No entanto, houve crescimento do número de casos no Norte e no Nordeste. “Existe a possibilidade de o aumento de casos nessas regiões resultar apenas da melhora de notificação. Mas ele pode se relacionar também à dificuldade de acesso a informações e serviços de saúde”, diz a sanitarista Tatiana Lima, professora de epidemiologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que estudou as disparidades regionais da epidemia.
Surgiu um arranhão na imagem do Brasil como referência mundial. Em 2014, dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, o Unaids, sugeriam que o número de casos no país havia aumentado entre 2005 e 2013, enquanto caía no mundo. Um novo relatório, de julho, mostra o Brasil no grupo de países em que a epidemia cresce. Após a divulgação, o diretor executivo da Unaids, Michel Sidibé, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, apontou a responsabilidade do governo brasileiro. “No Brasil, vemos um aumento da aids e, em parte, por complacência”, afirmou Sidibé. “Por anos, vimos a força incrível do Brasil liderando o debate mundial. Hoje, essa força foi perdida.”
Atrapalhou o Brasil a sensação de epidemia sob controle. Com o reconhecimento internacional, a política brasileira perdeu o impulso de encontrar seus pontos fracos e adaptar-se à evolução da epidemia. “Somos vítimas de nosso próprio sucesso”, diz Grangeiro, da USP. Na visão dele, o programa brasileiro começou a enfatizar as vitórias em vez chamar a atenção para os problemas. Grangeiro lidou com a ambiguidade entre março de 2003 e agosto de 2004, quando chefiou o programa nacional de HIV/Aids. “Nenhum governo quer expor problemas. É como se isso estragasse um programa de êxito internacional.”
O discurso de estabilização da epidemia – o mesmo repetido na divulgação dos dados na semana passada – fez o combate à aids perder prioridade no governo. “O departamento perdeu poder político e autonomia para decidir”, afirma o epidemiologista Pedro Chequer, que liderou o programa duas vezes, de 1996 a 2000 e de 2004 a 2006. O programa foi integrado formalmente à estrutura do ministério e, em 2009, transformou-se num departamento da Secretaria de Vigilância em Saúde. Nos anos 1990, o coordenador do programa era chamado de “ministro da aids” pelo então ministro da Saúde, Carlos Albuquerque. Com a perda da autonomia, tornou-se mais difícil para os coordenadores da área despachar diretamente com o ministro da Saúde.
Outra mudança importante ocorreu no mesmo período. Até 2002, o financiamento da prevenção era feito, sobretudo, com duas linhas do Banco Mundial, repassadas a estados e municípios por convênios. ONGs e outras organizações da sociedade civil recebiam parte do dinheiro inscrevendo projetos em concursos públicos. Em 2003, os recursos passaram a ser distribuídos diretamente a estados e municípios que, por sua vez, assumiram ações e o repasse aos projetos da sociedade civil. A ideia tinha fundamento: os recursos internacionais haviam diminuído e a descentralização poderia aumentar o alcance das ações.
O número de municípios que recebem recursos cresceu, de 150 em 2003 para 929 atualmente, mas o impacto conjunto das ações não acompanhou essa evolução. “Alguns estados não conseguem desenrolar o repasse de recursos para ONGs por causa da burocracia”, diz a socióloga Cristina Câmara, que chefiou entre 2000 e 2003 a unidade de articulação com a sociedade civil do programa de combate à aids. “Em outros, não há vontade para aplicar os recursos, por se considerar que outras áreas da saúde são prioridade ou por não se querer destinar recursos a populações como profissionais do sexo e homens que fazem sexo com homens.” Em 2012 descobriu-se que, quase dez anos após a descentralização, estados e municípios haviam deixado de usar R$ 161 milhões repassados pelo Ministério para ações de HIV/aids. A situação persiste. “Há recursos que não estão sendo aplicados corretamente”, afirma o ministro da Saúde, Ricardo Barros. “A informatização total do sistema estará pronta em poucos meses. Aí teremos o acompanhamento e só receberão recursos os estados, municípios e entidades que derem a informação sobre a aplicação do recurso.”
A diminuição do repasse de recursos às ONGs afetou as ações de prevenções para grupos vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens e profissionais do sexo. Para os ativistas, há ênfase no tratamento com medicamentos (que tornam a carga viral indetectável e impedem a transmissão do vírus), em detrimento de campanhas de prevenção mais agressivas. “Parece que o medicamento vai resolver tudo e não se discute mais prevenção”, afirma Veriano Terto Junior, coordenador da área de acesso ao tratamento da Abia. A ênfase não é motivada só por avanços médicos, mas também pelo avanço do conservadorismo no Congresso. “Fomos impedidos de fazer campanha”, afirma o infectologista Dirceu Greco, que dirigiu o departamento de DST/Aids entre 2010 e 2013. Ele foi exonerado após ter autorizado, sem aval do ministério, uma campanha voltada para profissionais do sexo que tinha como tema “Sou feliz por ser prostituta”. “Não pode falar de gay, não pode ensinar prevenção na escola, não pode falar sobre sexualidade”, afirma Greco.
O avanço da epidemia entre jovens, especialmente entre gays, não é um problema exclusivamente brasileiro. Em termos globais, o número de casos entre homens que fazem sexo com homens aumentou 12% entre 2010 e 2015. “O recrudescimento da epidemia acontece mesmo em países que avançaram muito em sua resposta à aids”, afirma o brasileiro Luiz Loures, diretor executivo adjunto do Unaids. Parte da explicação para o aumento vem de um fenômeno geracional. Quando os nascidos no início dos anos 1990 começaram sua vida sexual, em meados dos anos 2000, os medicamentos antirretrovirais mais potentes já haviam transformado a aids de mal fatal em doença crônica. “Eles não viram ídolos morrer”, afirma Fabio Mesquita, que foi coordenador do departamento entre 2013 e 2016. Essa falta de medo coincide com o declínio no uso de preservativo. De 2009 para cá, caiu de 76% para 66% a parcela de adolescentes de 14 anos que já tiveram relações sexuais e que afirmam ter usado camisinha na última vez.
Iniciativas recentes do Ministério da Saúde começam a aproximar as campanhas de prevenção do cidadão mais jovem – nem sempre com muito sucesso. Em 2015, perfis falsos criados pelo ministério no Tinder, um aplicativo para marcar encontros, procurava parceiros dispostos a fazer sexo sem preservativo para, então, informá-los: “É difícil saber quem tem HIV. Se divirta, mas se proteja”. A campanha não agradou aos usuários. Na Olimpíada do Rio, a abordagem mudou. Orientados pelo ministério, 18 jovens usuários do aplicativo de encontros Hornet se tornaram conselheiros para informar sobre prevenção. Seus perfis estavam identificados com o lacinho símbolo do HIV-Aids. A versão no Twitter não foi tão bem-sucedida. A conta do ministério usou a gíria close certo como hashtag para espalhar mensagens de prevenção. A ação foi criticada por associar o vírus a homossexuais. Na semana passada, o ministério apostou em um bate-papo com youtubers. São iniciativas bem-intencionadas, mas ainda sem a frequência e consistência necessárias. “Em países que começaram a resposta cedo, como o Brasil, vemos que ficou uma resposta para o jovem de 30 anos atrás”, diz Georgiana Braga-Orillard, diretora no Brasil do Unaids. “É preciso atualizar a estratégia.”
Jovens como Pierre ajudam a modernizar as mensagens de prevenção. Ele está à frente de grupos de discussão de jovens soropositivos e faz palestras para jovens que não têm o vírus. Não quer que eles se arrisquem por não ter informações ou alguém com quem conversar. Quer evitar que outros jovens se vejam contemplando o abismo por terem um exame positivo para HIV em mãos.
Fonte : Época
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