Os casos de indivíduos que buscam reconhecimento como transgênero são um fenômeno cultural recente ou pessoas que se sentiam presas em um corpo "trocado", do sexo oposto ao qual se identificavam, sempre existiram –mas eram obrigadas pelas convenções sociais a se esconder?
Foi essa a questão que motivou a historiadora Emily Skidmore, professora da Texas Tech (EUA), a iniciar a pesquisa que culminou no livro "True Sex: Trans Men at the Turn of the Twentieth Century" (Sexo verdadeiro: homens trans na virada do século 20, em tradução livre), que chega às livrarias dos Estados Unidos no próximo dia 16 e estará disponível também em plataformas como Kindle e iBooks.
Pesquisadora das questões de gênero, Skidmore descobriu não só que 120 anos atrás havia mulheres que viviam como se fossem homens mesmo nas áreas mais remotas dos Estados Unidos, em relações que passavam publicamente por casamentos convencionais, como que a comunidade local costumava aceitar esses casos desde que envolvessem homens de bem.
Durante nove anos, Skidmore analisou jornais e a literatura existente sobre sexologia, além de dados censitários, registros da justiça e transcrições de julgamentos para reconstruir a história de pessoas como Ralph Kerwineo, que em 1914 foi denunciado pela mulher às autoridades após a descoberta de uma traição amorosa. Kerwineo chegou a ser detido por desordem e ouviu do juiz que deveria se vestir como a mulher que era se quisesse ficar longe de problemas.
Emily Skidmore, autora de livro sobre transgênero.
True Sex usa histórias reais para defender a ideia de que o gênero humano sempre foi uma construção, tanto sujeito a debate quanto fluido.
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Folha - O que motivou sua pesquisa sobre o universo transgênero?
Emily Skidmore - Eu sempre me interessei pela história dos gêneros, especificamente pelos modos por meio dos quais as normas relacionadas a eles foram construídas ao longo do tempo. Quando iniciei minha pesquisa, em 2008, temas relacionados aos transgêneros eram discutidos com frequência no noticiário e apresentados quase sempre como um fenômeno novo. Isso me motivou a desafiar essa ideia e a olhar para a longa história de indivíduos transgênero.
Por que resolveu se concentrar na virada para o século 20? E por que a opção de tratar somente de homens trans?
A virada do século 20 é um período fascinante para se estudar porque muita coisa estava em transformação nos Estados Unidos. A nação se tornava mais urbana e moderna, e havia uma grande ansiedade na elite sobre os papeis de gênero quando mais e mais mulheres começavam a trabalhar fora e a lutar por direitos políticos.
Ao mesmo tempo, por volta de 1870, sexólogos na Europa e nos Estados Unidos definiram a homossexualidade como uma identidade distinta. Antes desse ponto, não se via o comportamento sexual como algo que definia a identidade de alguém –ou seja, uma pessoa podia desejar ou ter um romance com alguém do mesmo sexo, mas isso não determinava sua identidade. Assim, uma das coisas que me interessava sobre esse período era refletir a respeito de como as novas categorias de identidade são definidas e adotadas pelas pessoas comuns. Fiquei curiosa para ver como ideias criadas por cientistas se infiltravam e transformavam o modo como pessoas comuns pensavam sobre si mesmas ou seus vizinhos. E escolhi focar nos homens trans porque eles foram menos estudados que as mulheres trans.
O que você aprendeu sobre gênero? Foi o que você esperava?
Vi que existe uma longa história de pessoas que viviam como pertencentes a um gênero diferente ao identificado em seu nascimento, mesmo nas áreas mais remotas dos Estados Unidos. O que foi mais surpreendente é que, em muitos casos, a comunidade estava disposta a tolerar os homens trans em seu seio, desde que eles vivessem a vida como "bons homens" –ou seja, se fossem maridos solidários e trabalhadores empenhados. Havia limites a essa tolerância, é claro –ser visto como um "bom homem" era frequentemente algo que apenas homens trans brancos podiam conquistar, porque a presunção de inocência é um dos muitos privilégios de ser branco.
Nos últimos 120 anos, que termos foram usados para designar homens trans assumidos? E como esses termos se relacionam a cada período histórico?
Durante boa parte deles, não se empregava um termo único. Os jornais sensacionalistas poderiam usar linguagem humilhante como "homem-mulher" ou "marido garota", mas os jornais locais muitas vezes usavam uma linguagem muito mais humanizadora.
Por que a visibilidade do universo trans vem aumentando?
Uma das razões é que mais e mais indivíduos transgênero estão falando livremente e lutando por visibilidade e por direitos garantidos por lei.
Nos últimos anos, a corrente principal do movimento LGBT vem sendo a principal promotora de temas trans (enquanto, digamos, dez anos atrás, estava focada no direito ao casamento e ao serviço militar para gays e lésbicas).
E, é claro, existe um aumento da visibilidade na imprensa com celebridades como Laverne Cox, Chaz Bono e Caitlyn Jenner discutindo temas trans com um público mais amplo do que nunca. Esse aumento da visibilidade despertou nos EUA uma ansiedade que se manifestou na forma de legislação como a dos banheiros públicos [que permitia que pessoas usassem banheiros destinados ao gênero com o qual se identificavam e que foi revogada por Donald Trump].
Como você vê a recente decisão do presidente Donald Trump de banir a presença de transgêneros no Exército?
Estou profundamente triste com a decisão e a vejo como um retrocesso. Milhares de indivíduos transgênero servem atualmente nas Forças Armadas dos Estados Unidos, e eles deveriam ser festejados por sua coragem, e não expulsos. A decisão de Trump também é preocupante para aqueles de nós que se importam com os transgêneros porque criou um precedente inédito de escolher pessoas trans como alvo de discriminação.
Em artigo recente, o psicanalista brasileiro Marco Antonio Coutinho Jorge relacionou o aumento exponencial de casos de indivíduos trans à oferta de correção cirúrgica como solução para dúvidas sobre a diferença sexual. Como a medicina lidou com o tema ao longo do tempo?
Foi somente a partir de 1930 e 1940 que os médicos começaram a tratar de temas trans; antes, eles não eram uma categoria médica distinta. Antes dessa época, os médicos consideravam os indivíduos que se identificavam com um sexo diferente do que lhes fora atribuído no nascimento como loucos. Foi o caso de uma das pessoas de que trato no meu livro, Joseph Lobdell. Ele foi colocado em uma instituição de saúde mental nos anos 1880 devido à sua insistência de que era homem.
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Transexualidade
Antiguidade
Segundo a mitologia grega, Tirésias viveu parte da vida transformado em mulher como uma punição dos deuses
Séculos 16 e 17
Relatos de europeus apontam a existência, nas Américas, de indígenas que viviam como se fossem do sexo oposto
1838
O alienista Jean-Étienne Esquirol faz a primeira descrição de um caso que pode ser entendido como de transexualidade
Início do séc. 20
O médico e sexólogo alemão Magnus Hirschfeld é pioneiro na exploração das patologias sexuais ligadas a questões de gênero e na utilização do termo "travestismo".
1913
O psicólogo britânico Havelock Ellis propõe o termo "inversão sexo-estética" para descrever o travestismo e, em 1920, cunha a palavra eonismo para se referir a uma forma de transição da sexualidade
1931
Dora Richter se torna a primeira mulher trans a se submeter a uma vaginoplastia. Ela morreu após quatro cirurgias devido à rejeição do útero nela transplantado como parte do processo de readequação sexual
1952
Christine Jorgensen passa por cirurgia de readequação sexual depois de lutar na 2ª Guerra Mundial como homem
1953
O endocrinologista Harry Benjamin cunha o termo transexual e o define como indivíduo biologicamente normal, mas profundamente infeliz com seu sexo
Anos 1960
Início do ativismo em favor dos direitos dos transgênero nos EUA
Anos 1970 e 1980
Surgem diversas organizações de defesa dos transgêneros na Europa e nos EUA
Anos 1990
É criado nos EUA o Dia da Lembrança Transgênero, que depois se tornaria uma data internacional (20 de novembro), para homenagear vítimas de violência
Anos 2010
A atriz trans Laverne Cox é capa da revista "Time", e a ex-atleta e celebridade Caitlyn Jenner se assume como trans, dando mais visibilidade ao tema.
2016
Governo Obama lança nos EUA diretrizes para defender os direitos de estudantes transgênero –suspensas pelo presidente Donald Trump no início deste ano
2017
A Dinamarca é o primeiro país a retirar as identidades trans da lista de transtornos mentais; nos EUA, Trump anuncia a proibição de pessoas trans servirem às Forças Armadas
Fonte : Folha de S. Paulo