O Seminário Políticas de Acesso a Medicamentos e Direitos Humanos começou nesta segunda-feira (26) e vai até quarta-feira (28), na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Segundo Richard Parker, diretor-presidente da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), envolvendo a sociedade civil, gestores governamentais, academia e o setor privado, o seminário tem o objetivo de debater, de diversas perspectivas, as questões políticas sobre acesso a medicamentos e direitos humanos enfrentadas atualmente. “O motivo é lembrar que medicamento é uma questão de direitos humanos e não apenas técnica de comércio internacional deliberada em decisões técnicas e jurídicas”, disse Parker.
Por isso, para ele, neste evento que reúne representantes de várias organizações da América Latina, da África do Sul e da Rússia, é importante ressaltar o caráter intersetorial, o interdisciplinar e o internacional. “O internacional visa de fato compreender e debater em que lugar o Brasil se insere nas lutas e políticas globais de acesso aos ARVs (antirretrovirais) em 2016. Ou seja, 20 anos depois do papel de liderança que o país teve em abrir o espaço para acesso aos medicamentos em escala mundial”.
Richard Parker adiantou que, durante o seminário, muito será dito sobre a meta 90-90-90. Mas, referindo-se às históricas conquistas, tendo como data inicial a Conferência Internacional de Aids, que aconteceu em Vancouver no ano de 1996, o ponto de partida do evento, para ele, poderia ser escrito como 20-20-20.
“Pela primeira vez, depois de 15 anos de uma relativa impotência no enfrentamento da epidemia por parte da biomedicina, foram anunciadas conquistas importantes para o tratamento da infecção pelo HIV”, disse Richard Parker, sobre o anúncio do sucesso significativo do tratamento antirretroviral, quando a combinação das drogas tornou-se eficaz para inibir a replicação do vírus e a sua capacidade de infectar novas células.
“Para todos nós que estávamos em Vancouver é quase impossível descrever o impacto deste anúncio que transformou a nossa visão de epidemia de aids. Mas a delegação brasileira percebeu imediatamente a promessa contraditória desse anúncio. Por um lado, a possibilidade, pela primeira vez, de controle eficaz das doenças causadas pela infecção do HIV. Por outro, a probabilidade de que pessoas de países mais pobres não tivessem acesso a medicamentos tão promissores, por causa de seu custo extremamente elevado”, lembrou.
Ainda relembrando esses marcos históricos, Parker falou sobre o papel fundamental que a sociedade civil, pressionando os governos, teve no enfrentamento da aids no Brasil: “Em menos de seis meses, ainda em 1996, foi votada a lei 9313, conhecida como Lei Sarney. Essa lei, até hoje, garante acesso aos medicamentos antirretrovirais no Brasil. Uma lei que seria uma inspiração para toda a luta global pelo acesso ao tratamento da aids e que mobilizaria o mundo nos anos seguintes”. Em seguida foi aprovada, em 1996, a lei 9279 conhecida como a Lei de Patentes, que regula os direitos e obrigações, relativos à propriedade intelectual. “Portanto, em 2016, comemoramos, pelo menos, três aniversários de 20 anos, ou 20-20-20, que colocam grandes possibilidades e grandes desafios para o enfrentamento da aids”, afirmou.
Os últimos 20 anos, para Parker, significaram grandes avanços no acesso aos medicamentos, mas ele enfatizou que no mundo 20 milhões de pessoas ainda não têm acesso ao tratamento e fez um alerta. “Precisamos não só inclui-las [nas terapias], mas mantê-las em tratamento. Isso tudo em uma época que novas tecnologias de prevenção como PrEP e PEP [profilaxia pré-exposição e pós exposição], que dependem do uso de medicamentos, existem”.
Relações diplomáticas
O embaixador Celso Amorim, presidente do conselho executivo do Unitaid, uma organização internacional criada em 2006 com objetivo de facilitar o acesso aos medicamentos de combate à aids, participou da mesa de abertura ao lado de Richard Parker. Do ponto de vista das relações diplomáticas, políticas e comerciais, ele também relembrou os marcos históricos das últimas duas décadas sobre as negociações relacionadas às patentes.
Celso Amorim representou o Brasil em diversas organizações internacionais ao longo dos anos, incluindo a ONU (Organização das Nações Unidas) e a Organização Mundial do Comércio. Também foi duas vezes ministro das Relações Exteriores do Brasil e mais recentemente ministro da Defesa.
“Eu já tinha me ocupado da lei de patente por causa do Ministério de Ciência e Tecnologia. Esse era um objeto de grande disputa com os Estados Unidos porque eles sempre foram mais ativos nisso e o Brasil tinha uma lei de patente muito ampla, que excluía muitos setores, como o dos produtos farmacêuticos, tanto na parte de processo como de produto. Também havia certa liberdade para a concepção de licenças compulsórias, que seria a produção local a custos compatíveis. Minha vivência era mais para o lado industrial, político e tecnológico”, contou Amorim.
Entre negociações, acordos internacionais, lutas da sociedade civil, avanços na biomedicina e tecnologias dos tratamentos e pressões políticas, a primeira licença compulsória efetiva do Brasil foi a do efavirenz, em maio de 2007, importado da Índia.
“Se não houvesse a possibilidade da licença compulsória, seria muito difícil que se obtivessem licenças voluntárias. Mesmo assim, quando se dá a licença voluntária é com diferentes preços, para diferentes regiões. (...) A empresa privada está atrás de lucro e isso é normal, mas nós temos que buscar uma relação cooperativa com os laboratórios, sem abrir mão dos instrumentos fundamentais que existem para que o estado possa exercer sua politica”, afirmou.
Segundo Amorim, embora tenham caído os números de pessoas que morrem em decorrência da aids, um dos problemas de usar só as patentes como instrumento para obter inovações não é apenas que os remédios são caros, mas também porque muitos deles não existem. Doenças como ebola, malária e tuberculose multirresistente, por exemplo, que afetam países de média e baixa renda, não contam com tratamentos eficazes. “A Unitaid busca agir nisso. A organização não tem como financiar uma pesquisa básica sobre uma molécula, mas o desenvolvimento de uma formulação de aids pediátrica, que seja mais docinho e não uma pílula que tem que partir em vários pedaços, está no nosso alcance de ajudar a produzir. São projetos desse tipo que temos feito. Como também em relação a PrEP que estamos tentando fazer em parceria com a Fiocruz”.
A incorporação da PrEP no SUS
No período da manhã, antes da abertura do congresso, a diretora do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Adele Benzaken participou de uma discussão fechada junto com os ativistas em que falou sobre incorporação de novas tecnologias, como ela se dá no âmbito do Ministério da Saúde, da participação da sociedade civil nessas incorporação, da prestação de contas feita para a sociedade e sobre a mudança do PCDT do HIV em adultos e da PrEP.
“Foi colocado como são feitas as aquisições dos medicamentos. Por exemplo, o darunavir, a empresa que comercializa é uma empresa que cobra mais de R$ 9 por comprimido. O Ministério da Saúde faz a compra via Opas [Organização Pan-Americana da Saúde] do genérico utilizando todos os países do Mercosul em conjunto. Isso barateia o valor da droga para R$ 4. Existem dificuldades porque a indústria farmacêutica acaba tentando boicotar esse tipo de compra, mas são barreiras que enfrentamos para conseguir dar acesso a mais pessoas ao tratamento”, afirmou a dra. Adele.
Hoje, segundo a diretora, o Departamento gasta R$ 1,1 bilhão por ano com medicamentos antirretroviaris. “Esse é um orçamento bastante alto dentro da saúde. Quando a gente faz essas negociações e reduz o valor dos medicamentos, consegue incorporar novas drogas”, disse.
Agora, a discussão do Departamento é a respeito do truvada. Adele afirmou que o atual projeto é dar continuidade à PrEP e para isso existe uma parceria com o Unitaid para a implementação da droga com foco nos adolescentes em alta vulnerabilidade e outra para adultos de alta vulnerabilidade. “Esses dois projetos de alguma forma vão dar continuidade ao uso da PrEP, mas a ideia é ter essa tecnologia incorporada como política de saúde. Para isso, nós precisamos negociar preços porque com o valor atual é inviável. Estamos fazendo tudo o que é possível para que ela seja uma política pública”.
No dia 6 de outubro, o PCDT para pessoas vivendo com HIV vai ser avaliado na plenária da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) e o Departamento, segundo Adele, solicitou à Anvisa que acelere o que diz respeito à mudança do truvada para ser utilizada também como prevenção, pois, hoje, a droga só é autorizada como politica pública de tratamento. “Então, estamos aguardando essas situações para levar ao ministro a proposta de pelo menos 7 a 10 mil tratamentos no ano de 2017, mas tem coisas que dependem bem pouco da decisão de uma diretora do Departamento. Nós falamos apenas sobre ponto de vista técnico da necessidade de termos PrEP no Brasil, mas é preciso que seja aprovada em todas as instâncias”.
O seminário é realizado pela ABIA e pelo GTPI (Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual). Cerca de 200 pessoas se inscreveram e 180 participaram da abertura.